domingo, 10 de junho de 2007

"Todas as manhãs do mundo"


A música rege cada palavra de Todas as manhãs do mundo. E o espírito barroco, com seus claros/escuros, dá forma à história do encontro entre o mestre apolíneo e o discípulo dionisíaco, que se irmanam na busca da essência da música. De um lado, a disciplina e a morbidez, de outro a voluptuosidade e o gosto pela vida mundana, com suas glórias e as riquezas.
Estamos em 1650. Época de Luís XIV, com suas perucas barrocas e rostos empoados. O senhor de Sainte Colombe, o maior violista da França, sofre uma grande perda e se afasta do mundo, isolando-se numa cabana nos jardins de sua propriedade nos arredores de Paris. Seu único prazer é a viola da gamba, que revoluciona, acrescentando mais uma corda ao instrumento e mudando até a forma de segurá-lo. A viola, parente próxima do violoncelo, era então o instrumento predileto das cortes francesas e inglesas.
Depois de insistentemente desprezar os convites para se unir aos músicos da corte, o virtuose aceita apenas um discípulo, um filho de sapateiro chamado Maran Marais, que acabaria aclamado como um gênio renovador da viola da gamba.
Este livro é o responsável pela redescoberta do barroco na Europa. O filme Todas as manhãs do mundo, estrelado por Gérard Depardieu e seu filho Guillaume, despertou comoção na França, assim como a trilha sonora do filme, reunindo antigos solos de viola da gamba.

Detalhes sobre o filme:

Algumas falas de Monsieur de Sainte Colombe:
"Todos os prazeres do mundo se retiraram, nos dizendo adeus".
"Ás vezes o vento traz música até nós".
"O segredo de nossa arte é a surpresa".
"A música existe para falar o que as palavras não podem. Nesse sentido, não é totalmente humana".
Marin Marais:
"A vida é bela à proporção em que é feroz".
"Todas as manhãs do mundo são sem volta".
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quinta-feira, 7 de junho de 2007

A interpretação de sonatas barrocas - Aspectos gerais


A abordagem de sonatas barrocas

A interpretação de uma peça musical é mais efetiva e tem mais significado se o intérprete sabe o que a música exige dele, o que deseja comunicar, qual sua finalidade. As sonatas barrocas, por mais ligeiras e alegres ou aparentemente frívolas, necessitam possuir coerência, seja por sua relação harmônica, seu caráter (afeto) dominante, ou sua simples relação temática. Dentro desta unidade, deve abarcar suficiente variedade e contraste, bem como sustentar a audição do ouvinte. A música associada a palavras pode emitir forma, substância e caráter do significado das palavras. A música meramente instrumental, ao contrário, deve gerar por si mesma suas estruturas e recursos composicionais. O músico, desde o início, deve sentir e comunicar a forma e desenvolvimento da sonata ao longo de toda sua extensão, num processo de abordagem gestáltico.

Em termos gerais, remetemos inicialmente à natureza dos tons e temperamentos, bem como às indicações de caráter descritas no início da peça ( como por ex. Spirituoso, Affettuoso), indicando o sentimento dominante. Em seguida, aos aspectos agógicos inerentes ao discurso, como:

*Dissonâncias e modulações: produzem uma variedade de diferentes afetos, gerando propositalmente tensão no discurso.
*Intervalos próximos, ligados, geralmente expressando a melancolia e a ternura; enquanto os saltos e notas articuladas remetendo a alegria .
*Passagens lentas e cromáticas normalmente aludindo a sentimentos dolorosos.
*Ritmos com conotações afetivas especificas (ex, duas semicolcheias e uma colcheia aludindo a um caráter guerreiro).

A disciplina da retórica requer ordem e proporção. No séc. XVIII, a simetria e a justa proporção eram muito cultivadas tanto por arquitetos quanto por compositores. Uma frase musical completa equivale a uma frase de um discurso, grupos de duas ou três notas ( = sílabas ) equivalem as palavras que constituem a frase. O realce a sílabas fortes ou fracas requer coerência no sentido e ritmo das palavras. Cada frase tem um clímax retórico que se relaciona com sua cadência. A arte do intérprete era combinar a plena consciência e identificação dos afetos de uma peça com sua formulação em padrões e estruturas , tudo isso com uma impressão de espontaneidade, como se ele fosse o próprio autor da peça. Nas danças barrocas, agrupadas nas Suítes, o conhecimento de seu caráter e coreografia ajuda a compreender seu significado. Os movimentos lento-rápido-lento-rápido das sonatas de câmara asseguravam efetividade retórica: um começo sedutor para captar a atenção do público, um allegro mais comprometido, um adágio contemplativo, e um final feliz para reanimar o espírito. O intérprete deve levar em consideração os limites expressivos estipulados pela música. Dentro desses limites o tocar deve ser livre, relaxado e sincero para assim poder deixar fluir os afetos de uma maneira clara e equilibrada. O contrário disto seria o intérprete se apoderar da peça para mostrar habilidades e afetos alheios à composição. A idéia de interpretação original está no equilíbrio entre o intérprete e a composição. O intérprete precisa, para exercer sua função, de um bom controle técnico de seu instrumento, poder decifrar e controlar afetos, abstrair idéias e inspiradamente comunicá-las à audiência através do som.


(Fonte: ROWLAND-JONES, Anthony: "Playing Recorder Sonatas: Interpretation and Technique" (Clarendon Press, Oxford, 1992).